A epístola aos Hebreus tem sido, ao longo dos séculos, alvo de debates intensos no campo da crítica textual, da teologia bíblica e da história da igreja. Poucos livros (ou talvez nenhum outro) do Novo Testamento despertaram tanta especulação quanto à sua autoria, e também, carregam tamanha densidade doutrinária, profundidade cristológica e unidade veterotestamentária como esta carta. Desde os primeiros séculos da igreja, estudiosos, teólogos e pastores têm se debruçado sobre a questão: quem escreveu a carta aos Hebreus? Embora muitos nomes tenham sido sugeridos como Apolo, Barnabé, Lucas, e recentemente até mesmo Priscila, nenhum deles oferece uma explicação tão coerente, completa e satisfatória quanto o apóstolo Paulo. A despeito da controvérsia, afirmo com total convicção: Paulo é, inevitavelmente, o autor da epístola aos Hebreus. É bem verdade que alguns questionamentos legítimos surgem diante do anonimato da carta, e seria uma postura intelectualmente desonesta ignorar a ausência do nome de Paulo logo na saudação, como ocorre em suas demais epístolas. Além disso, o estilo linguístico e a forma retórica diferem, em certos aspectos, das outras cartas paulinas. Esses elementos têm sido usados como argumentos por muitos críticos modernos para negar a autoria paulina. No entanto, tais objeções, embora influentes, falham em dar conta do peso da evidência interna, da tradição patrística, e da coerência doutrinária que esta epístola mantém com o corpus paulino. O debate existe, é antigo, mas ignora fatos cruciais. Entre eles, o mais fundamental é que tudo em Hebreus, desde a teologia da nova aliança apresentada até sua forma de raciocínio lógico e o profundo entrelaçamento com o Antigo Testamento, ressoa a voz de Paulo, ainda que, nesta carta, ele opte por não se identificar de maneira explícita ou nominalmente. Historicamente, a dúvida quanto à autoria de Hebreus é mais acentuada no Ocidente do que no Oriente. Os pais da igreja oriental, como Clemente de Alexandria por exemplo, mesmo com cautela, reconheceu Paulo como o autor, ainda que talvez por meio de um amanuense ou tradutor como Lucas. Eusébio, no quarto século, já menciona essa tradição como predominante no Oriente. Agostinho e Jerônimo, grandes nomes da igreja ocidental, acabaram também aceitando a autoria paulina. Essa aceitação histórica não pode ser descartada levianamente. Negá-la exige mais do que dúvidas estilísticas, exige desconsiderar o testemunho da igreja que recebeu, preservou e reconheceu a epístola com base em critérios de autoridade apostólica. Além disso, Hebreus não apenas compartilha com Paulo a profundidade doutrinária, mas também o encadeamento lógico de argumentos, o foco na suficiência da obra de Cristo, a transição da Antiga Aliança para a Nova, o uso de citações veterotestamentárias e a preocupação pastoral com a perseverança dos crentes hebreus em meio à perseguição. A carta possui a assinatura teológica de Paulo, ainda que sua caneta tenha escolhido, por razões estratégicas ou contextuais, não escrever seu nome. Essa é uma hipótese que, longe de ser fraca, se mostra altamente plausível. Paulo escreve a judeus crentes, alguns possivelmente hostis a ele por seu apostolado aos gentios, e opta por deixar que a doutrina fale mais alto que a identidade. Portanto, ao nos debruçarmos sobre esta questão, devemos fazê-lo com reverência, mas também com ousadia. Reverência, porque estamos tratando de um livro sagrado, inspirado, que transcende o homem que o escreveu. Ousadia, porque a verdade precisa ser defendida, especialmente quando está sendo obscurecida por teorias críticas que muitas vezes partem de premissas céticas ou até mesmo seculares. A questão da autoria de Hebreus não é meramente uma curiosidade acadêmica, como alguns podem sugerir, mas é parte de uma compreensão mais ampla da autoridade apostólica e da coerência interna da revelação. Não se trata de impor dogmaticamente uma posição, mas de reconhecer que há, sim, uma base sólida e antiga, tanto histórica quanto bíblica, para afirmar com confiança que a Epístola aos Hebreus saiu da pena do apóstolo Paulo, inspirada pelo Espírito Santo. A Assinatura Doutrinária de Paulo em Hebreus Ao examinarmos atentamente o conteúdo da epístola aos Hebreus, nos deparamos com a realidade de que o pensamento, a teologia e o estilo argumentativo encontrados nesta carta são, em sua essência, profundamente paulinos. Mesmo diante de algumas distinções estilísticas (das quais reconheço), tal como maior elevação da linguagem e a ausência da saudação tradicional, é impossível não perceber que a epístola carrega, em seu DNA, a marca do apóstolo dos gentios. A análise interna da carta, isto é, seu conteúdo doutrinário, sua estrutura retórica, sua perspectiva cristocêntrica e seu uso das Escrituras, oferece testemunho eloquente a favor de Paulo como autor. Demonstrarei a partir de alguns pontos. 1.1. A Teologia da Nova Aliança: O Coração da Mensagem Paulina Um dos traços mais notáveis de Hebreus é sua exposição da superioridade de Cristo (e a Nova Aliança) em relação à Antiga Aliança. Paulo demonstra, com profundidade, que Jesus é o Mediador de uma nova e superior aliança, estabelecida com base em melhores promessas (Hebreus 8.6). Esse tema, que é o contraste entre as alianças, o fim do sacerdócio levítico e a inauguração do sacerdócio eterno de Cristo segundo a ordem de Melquisedeque, encontra seu paralelo direto e quase exclusivo em Paulo. Por exemplo, em 2 Coríntios 3, Paulo faz exatamente essa comparação entre a Antiga Aliança, gravada em tábuas de pedra, e a nova, gravada no coração, enfatizando a glória muito superior desta última. Em Gálatas 3 e 4, ele expõe o propósito transitório da Lei e a primazia da promessa cumprida em Cristo. Já em Romanos 7, trata da morte do crente para a Lei pela união com Cristo. Tudo isso converge justamente com os temas centrais de Hebreus, a saber, a insuficiência do sistema mosaico, a tipologia do tabernáculo, o papel dos sacrifícios como sombras, e a perfeição final e definitiva do sacrifício de Cristo. Não é meramente coincidência, nem mesmo possível que qualquer outro autor que não Paulo tenha desenvolvido algo desse nível. Tais paralelos não são superficiais. São sistemáticos, desenvolvidos com a mesma lógica e com a mesma paixão que marcam os escritos paulinos. 1.2. O Estilo Argumentativo