Desfazendo o espantalho arminiano contra João Calvino
⚠️ Nota: A intenção desse texto não é defender João Calvino como um santo ou um papa. Na verdade, visa tão somente esclarecer os fatos e mostrar que, infelizmente, opositores do calvinismo usam essa história para descredibilizar tanto o reformador, quanto as doutrinas da graça. De todo modo, não pretendo advogar em causa do reformador, mas apresentar a verdade abafada, escondida e também distorcida acerca do caso Calvino e Servetos.
Poucos episódios na história da Reforma foram tão distorcidos e mal utilizados quanto o caso de João Calvino e Miguel Serveto. A acusação de que Calvino teria sido o “assassino” de Serveto ainda hoje circula como se fosse um fato comprovado. No entanto, uma análise honesta dos registros históricos mostra algo bem diferente. Isso porque Calvino não possuía poder civil para determinar a pena de ninguém, nem mesmo de Serveto. Ele também não foi juiz nem executor, e na verdade, procurou interceder por uma forma menos cruel de execução. Ignorar essa parte da história é repetir um espantalho conveniente, mas injusto e desonesto, o que não condiz com a postura de um cristão.
Serveto era um médico e teólogo espanhol que rejeitava a doutrina da Trindade e havia publicado escritos que negavam abertamente verdades consideradas centrais da fé cristã na época. Por essas razões, ele já havia sido condenado à morte pela Inquisição católica em Viena, de onde fugiu e escapou. Ao passar por Genebra, em 1553, foi reconhecido, preso e levado a julgamento. Nessa parte da história, é importante entender que em Genebra, o poder de vida e morte não estava nas mãos da Igreja, mas nas mãos do conselho da cidade. Calvino, como pastor e teólogo, tinha influência, mas não detinha absolutamente nenhuma autoridade civil. Alister McGrath diz que “o processo contra Serveto foi conduzido pelo Conselho de Genebra, e não por Calvino. O reformador participou como perito teológico, mas a decisão final coube ao poder civil”.
De fato, Calvino apresentou acusações teológicas contra Serveto e foi ouvido como testemunha e conselheiro. Ele acreditava, como era comum no século XVI, que a heresia pública e persistente era um crime civil porque ameaçava a ordem social e também espiritual da comunidade. Nesse sentido, não é possível absolver Calvino de toda responsabilidade envolvendo Serveto, mas devemos ser justos. Transformar sua participação em autoria do crime e acusá-lo de ter “matado Serveto” é desonestidade. A execução não foi um ato pessoal de Calvino, nem direta, nem indiretamente, mas uma deliberação do conselho municipal após consultar inclusive outras cidades como Zurique e Berna, que também recomendaram punição severa ao herege.
Outro dado geralmente ignorado é que Calvino tentou amenizar a forma da execução. John Piper escreve que “Calvino pediu que Serveto fosse decapitado, o que seria um método rápido, e não queimado vivo, como acabou acontecendo. Porém, sua solicitação não foi atendida pelo Conselho”. Richard Strevel também acrescenta sobre esse assunto que “Calvino não possuía autoridade para mudar a pena, e sua intercessão não teve efeito”. O fato de Calvino não ter conseguido mudar a sentença mostra seus limites diante do poder civil. Ele de fato tinha influência, mas não controle para mudar a situação.
Por isso, é desonesto e até mesmo pecado repetir a mentira de que “Calvino matou Serveto”. A verdade é que Calvino não tinha jurisdição civil para determinar ou executar pena contra ninguém. Seu papel foi no máximo de conselheiro, e ainda assim na intenção de suavizar a execução de Serveto. O responsável legal e direto foi o Conselho de Genebra, que agiu de acordo com o padrão jurídico e religioso do século XVI, tanto em territórios católicos quanto protestantes. Negar isso é desconhecer ou manipular a história.
Concluo dizendo que Calvino não foi assassino. Não estou dizendo que ele não era pecador, pois sabemos que era. O ponto é que ele não teve nas mãos a espada do Estado. O episódio de Serveto, embora bem controverso quanto a sua execução, não serve como arma para manchar injustamente a memória do reformador. Aqueles que insistem em perpetuar a caricatura de um Calvino sanguinário não fazem justiça nem à verdade histórica, nem ao legado deixado por ele. Calvino não matou Serveto, e repetir o contrário é insistir em mentira.
— Clinton Ramachotte
Clinton Ramachotte é membro da Igreja Batista em Moraes Prado, na capital de São Paulo.
Bacharel em Teologia pela FATERGE, e também pela ESTEC-REF. É também professor da matéria de Seitas e Heresias na ESTEC-REF.
Autor de obras importantes na apologética, como “Os 5 Solas e Eu: A Prática Piedosa dos Solas da Reforma”, “Resposta aos Adventistas do 7° Dia: Um Tratado Apologético”, “Desvendando o Islamismo: Dissecando a Religião Muçulmana”, dentre outras obras.
