A EPÍSTOLA AOS HEBREUS E A AUTORIA PAULINA – CLINTON RAMACHOTTE

A epístola aos Hebreus tem sido, ao longo dos séculos, alvo de debates intensos no campo da crítica textual, da teologia bíblica e da história da igreja. Poucos livros (ou talvez nenhum outro) do Novo Testamento despertaram tanta especulação quanto à sua autoria, e também, carregam tamanha densidade doutrinária, profundidade cristológica e unidade veterotestamentária como esta carta. Desde os primeiros séculos da igreja, estudiosos, teólogos e pastores têm se debruçado sobre a questão: quem escreveu a carta aos Hebreus? Embora muitos nomes tenham sido sugeridos como Apolo, Barnabé, Lucas, e recentemente até mesmo Priscila, nenhum deles oferece uma explicação tão coerente, completa e satisfatória quanto o apóstolo Paulo. A despeito da controvérsia, afirmo com total convicção: Paulo é, inevitavelmente, o autor da epístola aos Hebreus.

Autoria de Paulo em Bíblia antiga em latim

É bem verdade que alguns questionamentos legítimos surgem diante do anonimato da carta, e seria uma postura intelectualmente desonesta ignorar a ausência do nome de Paulo logo na saudação, como ocorre em suas demais epístolas. Além disso, o estilo linguístico e a forma retórica diferem, em certos aspectos, das outras cartas paulinas. Esses elementos têm sido usados como argumentos por muitos críticos modernos para negar a autoria paulina. No entanto, tais objeções, embora influentes, falham em dar conta do peso da evidência interna, da tradição patrística, e da coerência doutrinária que esta epístola mantém com o corpus paulino. O debate existe, é antigo, mas ignora fatos cruciais. Entre eles, o mais fundamental é que tudo em Hebreus, desde a teologia da nova aliança apresentada até sua forma de raciocínio lógico e o profundo entrelaçamento com o Antigo Testamento, ressoa a voz de Paulo, ainda que, nesta carta, ele opte por não se identificar de maneira explícita ou nominalmente.

Historicamente, a dúvida quanto à autoria de Hebreus é mais acentuada no Ocidente do que no Oriente. Os pais da igreja oriental, como Clemente de Alexandria por exemplo, mesmo com cautela, reconheceu Paulo como o autor, ainda que talvez por meio de um amanuense ou tradutor como Lucas. Eusébio, no quarto século, já menciona essa tradição como predominante no Oriente. Agostinho e Jerônimo, grandes nomes da igreja ocidental, acabaram também aceitando a autoria paulina. Essa aceitação histórica não pode ser descartada levianamente. Negá-la exige mais do que dúvidas estilísticas, exige desconsiderar o testemunho da igreja que recebeu, preservou e reconheceu a epístola com base em critérios de autoridade apostólica. Além disso, Hebreus não apenas compartilha com Paulo a profundidade doutrinária, mas também o encadeamento lógico de argumentos, o foco na suficiência da obra de Cristo, a transição da Antiga Aliança para a Nova, o uso de citações veterotestamentárias e a preocupação pastoral com a perseverança dos crentes hebreus em meio à perseguição. A carta possui a assinatura teológica de Paulo, ainda que sua caneta tenha escolhido, por razões estratégicas ou contextuais, não escrever seu nome. Essa é uma hipótese que, longe de ser fraca, se mostra altamente plausível. Paulo escreve a judeus crentes, alguns possivelmente hostis a ele por seu apostolado aos gentios, e opta por deixar que a doutrina fale mais alto que a identidade.

Portanto, ao nos debruçarmos sobre esta questão, devemos fazê-lo com reverência, mas também com ousadia. Reverência, porque estamos tratando de um livro sagrado, inspirado, que transcende o homem que o escreveu. Ousadia, porque a verdade precisa ser defendida, especialmente quando está sendo obscurecida por teorias críticas que muitas vezes partem de premissas céticas ou até mesmo seculares. A questão da autoria de Hebreus não é meramente uma curiosidade acadêmica, como alguns podem sugerir, mas é parte de uma compreensão mais ampla da autoridade apostólica e da coerência interna da revelação. Não se trata de impor dogmaticamente uma posição, mas de reconhecer que há, sim, uma base sólida e antiga, tanto histórica quanto bíblica, para afirmar com confiança que a Epístola aos Hebreus saiu da pena do apóstolo Paulo, inspirada pelo Espírito Santo.

A Assinatura Doutrinária de Paulo em Hebreus

Ao examinarmos atentamente o conteúdo da epístola aos Hebreus, nos deparamos com a realidade de que o pensamento, a teologia e o estilo argumentativo encontrados nesta carta são, em sua essência, profundamente paulinos. Mesmo diante de algumas distinções estilísticas (das quais reconheço), tal como maior elevação da linguagem e a ausência da saudação tradicional, é impossível não perceber que a epístola carrega, em seu DNA, a marca do apóstolo dos gentios. A análise interna da carta, isto é, seu conteúdo doutrinário, sua estrutura retórica, sua perspectiva cristocêntrica e seu uso das Escrituras, oferece testemunho eloquente a favor de Paulo como autor. Demonstrarei a partir de alguns pontos.

1.1. A Teologia da Nova Aliança: O Coração da Mensagem Paulina

Um dos traços mais notáveis de Hebreus é sua exposição da superioridade de Cristo (e a Nova Aliança) em relação à Antiga Aliança. Paulo demonstra, com profundidade, que Jesus é o Mediador de uma nova e superior aliança, estabelecida com base em melhores promessas (Hebreus 8.6). Esse tema, que é o contraste entre as alianças, o fim do sacerdócio levítico e a inauguração do sacerdócio eterno de Cristo segundo a ordem de Melquisedeque, encontra seu paralelo direto e quase exclusivo em Paulo. Por exemplo, em 2 Coríntios 3, Paulo faz exatamente essa comparação entre a Antiga Aliança, gravada em tábuas de pedra, e a nova, gravada no coração, enfatizando a glória muito superior desta última. Em Gálatas 3 e 4, ele expõe o propósito transitório da Lei e a primazia da promessa cumprida em Cristo. Já em Romanos 7, trata da morte do crente para a Lei pela união com Cristo. Tudo isso converge justamente com os temas centrais de Hebreus, a saber, a insuficiência do sistema mosaico, a tipologia do tabernáculo, o papel dos sacrifícios como sombras, e a perfeição final e definitiva do sacrifício de Cristo. Não é meramente coincidência, nem mesmo possível que qualquer outro autor que não Paulo tenha desenvolvido algo desse nível. Tais paralelos não são superficiais. São sistemáticos, desenvolvidos com a mesma lógica e com a mesma paixão que marcam os escritos paulinos.

1.2. O Estilo Argumentativo e a Lógica Paulina

O autor de Hebreus não apenas apresenta doutrina, mas o faz por meio de um raciocínio lógico, progressivo, e frequentemente conclusivo, a famosa “teologia em forma de silogismos” pela qual Paulo é conhecido em suas outras cartas, especialmente em Romanos. A carta aos Hebreus é construída como uma tese bem fundamentada teologicamente, com proposições, demonstrações, analogias veterotestamentárias, aplicações práticas e exortações pastorais, exatamente como vemos em Romanos, Gálatas e Efésios.

Por exemplo, o autor utiliza uma técnica bem característica de Paulo, que é o argumento do menor para o maior (a expressão “quanto mais…”), o uso tipológico do Antigo Testamento, e o princípio de interpretação cristocêntrica da Lei e dos profetas. Ele expõe que o sacerdócio levítico não poderia levar ninguém à perfeição (Hebreus 7.11), logo, era necessário um sacerdócio superior, a saber, o de Cristo. Esse tipo de argumento está em perfeita harmonia com o estilo de Romanos 4, Gálatas 3 e 1 Coríntios 15. Facilmente conseguimos reconhecer esse aspecto nos escritos paulinos. Hebreus, como as epístolas paulinas, é uma obra de lógica aplicada às verdades relacionadas à fé e doutrina aplicada à vida. É verdadeiramente uma filosofia redentora, raciocínio moldado pelo Espírito, o que é, de fato, uma marca registrada de Paulo.

1.3. O Vocabulário e os Temas Recorrentes: Coincidências Inexplicáveis?

Embora estudiosos críticos apontem variações estilísticas, uma análise mais cuidadosa revela um uso consistente de vocabulário e conceitos caros a Paulo. Termos como “herança”, “mediador”, “sacrifício”, “fé”, “justificação”, “consciência purificada” e “acesso a Deus” são predominantes tanto em Hebreus quanto nas epístolas reconhecidamente paulinas. Além disso, o conceito de Cristo como “último Adão”, representante federal e cabeça de uma nova humanidade, presente em Romanos 5 e 1 Coríntios 15, reaparece em Hebreus sob a linguagem sacerdotal e cúltica. O mesmo acontece com a ênfase na fé como confiança perseverante na promessa divina, como se vê em Hebreus 11, que funciona como uma exposição prática de Romanos 4. Coincidência? Difícil sustentar. Trata-se, antes, de uma mente moldada pela mesma matriz teológica.

1.4. As Referências Pessoais como Um Sistema Paulino

A parte final da epístola fornece uma pista textual valiosa: “Sabei que já está solto o irmão Timóteo, com o qual, se vier logo, vos verei” (Hebreus 13.23). Essa menção direta a Timóteo é extremamente importante para nosso argumento. Poucos personagens bíblicos foram tão intimamente associados a Paulo quanto Timóteo, seu “filho na fé” (1 Timóteo 1.2) e seu colaborador mais constante. Além disso, a forma como o autor envia saudações “a todos os vossos chefes e a todos os santos” (Hebreus 13.24) é típica das saudações finais nas cartas paulinas. A fórmula, o vocabulário e o tom são todos compatíveis com a pena do apóstolo.

E mais: a própria ausência do nome de Paulo pode ser melhor explicada por sua sabedoria. A epístola é dirigida a judeus crentes, muitos dos quais possivelmente viam Paulo com suspeita por seu ministério entre gentios. Evitar seu nome seria uma estratégia para não criar obstáculos à recepção da mensagem. Assim como em Coríntios ele se tornou “judeu para os judeus”, aqui ele se esconde para que Cristo seja mais claramente exaltado.

Outro ponto a considerar é que, embora Paulo não se identifique nominalmente, ele claramente escreve com autoridade apostólica. A epístola contém exortações doutrinárias, correções, aplicações morais, e, acima de tudo, uma teologia sistematizada que exige submissão dos seus leitores. Não é um tratado especulativo ou meramente devocional; é uma carta com peso canônico, cheia de imperativos, advertências e promessas, como toda epístola apostólica. A autoridade, portanto, está presente. O que não está é a autopromoção. E isso é consistente com o próprio coração de Paulo, pois em diversas ocasiões ele sabiamente “esconde” sua posição, não para negar seu chamado, mas para exaltar a Cristo. A ausência de sua identificação, nesse caso, serve exatamente a esse propósito, que é fazer com que Cristo, e não o autor humano, seja o foco exclusivo da epístola. É uma manifestação absoluta de 2 Coríntios 4.5: “Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor”.

1.5. Paralelos com outras Epístolas Paulinas

Há precedentes desse tipo de sensibilidade pastoral nas outras cartas paulinas. Em 1 Coríntios 9.19-23, Paulo expõe sua estratégia missionária: “fiz-me judeu para os judeus, para ganhar os judeus… fiz-me como fraco para os fracos… fiz-me tudo para todos”. Isso não é mero pragmatismo: é zelo evangelístico. Hebreus é, nesse sentido, uma extensão dessa filosofia de ministério. Ao omitir seu nome, Paulo não está se escondendo, mas se adaptando — não para adulterar o evangelho, mas para retirar entraves humanos ao evangelho.

Além disso, em outras ocasiões, Paulo escreveu por meio de um amanuense ou colaborador (cf. Romanos 16.22), o que pode ter influenciado a forma da redação de Hebreus. Se, como muitos pais da igreja sustentaram, Lucas serviu de intermediário na composição grega do texto (o que explicaria o estilo mais refinado), isso reforça ainda mais a ideia de que Paulo deliberadamente adaptou seu meio de comunicação ao público-alvo.

Em resumo, a ausência do nome de Paulo em Hebreus, longe de ser uma evidência contra sua autoria, é, na verdade, um argumento poderoso a favor dela. Nenhum outro autor do Novo Testamento teria a mesma razão para omitir seu nome. Nenhum outro demonstrou tamanha disposição para se apagar para que a mensagem fosse exaltada. Hebreus é uma epístola cristocêntrica do início ao fim, e não há maior prova de que foi Paulo quem a escreveu do que o fato de que, ali, ele se fez nada, para que Cristo fosse tudo.

1.6. A Citação de Habacuque 2.4

Há uma evidência interna, muitas vezes negligenciada, mas de grande peso teológico e estilístico em defesa da autoria paulina de Hebreus, que é a citação de Habacuque 2.4: “o justo viverá pela fé”, presente em Hebreus 10.38. Essa citação é de extrema relevância, pois ela não apenas aparece em Hebreus, mas também em duas outras epístolas do Novo Testamento, também escrita por Paulo Romanos 1.17 e Gálatas 3.11, ambas de autoria indiscutida de Paulo.

O ponto central é o seguinte: Paulo é o único escritor do Novo Testamento que faz uso desse texto de Habacuque, e o faz com uma profundidade doutrinária característica. A aparição dessa mesma citação em Hebreus, num contexto teológico igualmente denso, não pode ser tratada como coincidência. Pelo contrário, é um forte indicativo de que a mente por trás dessas três citações em Romanos, Gálatas e Hebreus é a mesma, ou seja, a mente inspirada pelo Espírito do apóstolo Paulo.

Este é um ponto que deve ser frisado com toda força, visto que nenhum outro autor do Novo Testamento cita Habacuque 2.4. Nenhum dos evangelistas. Nem Pedro. Nem Tiago. Nem João em suas epístolas. Apenas Paulo e, curiosamente, o autor de Hebreus. Isso torna a citação em Hebreus 10.38 uma evidência quase forense. Ela levanta a seguinte pergunta: por que alguém além de Paulo usaria essa passagem em especifico, com o mesmo peso e propósito, exatamente da mesma maneira? A resposta mais simples e, de fato, a mais lógica, é que o autor é o mesmo. Se tomarmos as Escrituras como um testemunho coerente, inspirado e fiel, não podemos tratar essas coincidências como casuais. Hebreus respira a teologia paulina. E aqui, com a citação de Habacuque 2.4, encontramos não apenas uma respiração, mas o pulso vital da teologia de Paulo.

1.7. O Vigor Cristocêntrico e a Alta Cristologia Paulina

Hebreus apresenta uma das mais elevadas cristologias do Novo Testamento. Cristo é descrito como:

➣ o herdeiro de todas as coisas (Hb 1.2),
➣ o resplendor da glória de Deus e a expressa imagem da sua pessoa (Hb 1.3),
➣ superior aos anjos (Hb 1-2),
➣ maior que Moisés (Hb 3),
➣ Sumo Sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque (Hb 5-7),
➣ mediador de uma nova aliança (Hb 8),
➣ ofertante e oferta perfeita (Hb 9-10).

Toda a carta gira em torno da supremacia absoluta de Cristo. Isso é teologia paulina em sua forma mais pura. Basta comparar com Colossenses 1.15-20 e Filipenses 2.5-11 para ver a afinidade. Em ambos os textos citados, Cristo é exaltado como o centro da criação, da redenção, da reconciliação e da revelação de Deus. Não há outro apóstolo que escreva dessa maneira sobre Cristo, com tamanha amplitude doutrinária e profundidade sacerdotal, como Paulo.

Além disso, Hebreus segue um padrão doutrinário e expositivo semelhante ao de Romanos, o maior tratado teológico de Paulo. Assim como em Romanos, a epístola aos Hebreus apresenta:

• uma exposição profunda da justificação e acesso a Deus mediante a fé (Hb 10.19-22),
• uma explicação sistemática do papel da Lei, da antiga aliança, dos sacrifícios e do sacerdócio (Hb 7-10),
• uma aplicação pastoral baseada em doutrina sólida (Hb 12-13).

É a mesma lógica, onde vemos doutrina antes, prática depois. É a estrutura que Paulo usa consistentemente em suas cartas (cf. Romanos 1-11: doutrina; 12–16: prática). Hebreus segue o mesmo modelo.

1.8. O Amor pelo Antigo Testamento

Uma das características mais inconfundíveis do apóstolo Paulo é seu profundo zelo pelas Escrituras do Antigo Testamento. Para ele, a autoridade da Palavra revelada era absoluta e incontornável, e todo ensino doutrinário precisava estar firmemente alicerçado na revelação pré-existente. Em Romanos 15.4, Paulo escreve: “Porque tudo o que dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito.”

Essa convicção se reflete em toda sua obra. Ele não escreve como um mero filósofo, mas como um teólogo da revelação, cuja tarefa é mostrar que a fé cristã é o cumprimento do que Deus já havia dito na Lei e nos Profetas. E é exatamente esse mesmo espírito que domina cada capítulo da epístola aos Hebreus. Não vemos isso em nenhum outro autor bíblico, mas única e exclusivamente em Paulo.

Hebreus contém aproximadamente 35 citações diretas do Antigo Testamento, além de dezenas de alusões e referências implícitas. Isso por si só já é notável, e se iguala ao que Paulo faz em Romanos e Gálatas, por exemplo. Mas mais do que a quantidade, o que impressiona é o modo como as citações são usadas. Por exemplo:

➣ Em Hebreus 1, o autor estabelece a supremacia do Filho em relação aos anjos por meio de uma sequência de sete citações do Antigo Testamento, todas dispostas com precisão teológica e retórica.
➣ Em Hebreus 3 e 4, ele interpreta o Salmo 95 com aplicação exegética, explicando o repouso de Deus e advertindo contra a incredulidade da mesma forma como Paulo interpreta Gênesis 15.6 em Romanos 4 ou Êxodo 32 em 1 Coríntios 10.
➣ Em Hebreus 7, a teologia do sacerdócio de Melquisedeque (baseada em Gênesis 14 e Salmo 110) é desenvolvida com raciocínio lógico, progressivo, sistemático, absolutamente paulino em seu método e alcance.
➣ Em Hebreus 8, a citação integral de Jeremias 31.31-34 sobre a Nova Aliança é interpretada exatamente como Paulo faz em 2 Coríntios 3, inclusive com a mesma ênfase no contraste entre letra e espírito, velho e novo, sombra e realidade.

Nenhum outro autor do Novo Testamento, com exceção de Paulo, demonstra esse domínio técnico de toda a teologia do Antigo Testamento.

1.9. A Impossibilidade de Outro Autor

Conforme dito na introdução desse artigo, ao longo dos séculos, diversas sugestões foram feitas quanto à autoria de Hebreus. Apolo, Barnabé, Clemente de Roma, Priscila, Aquila e outros. Embora a intenção de tais suposições seja, em geral, respeitosa e até acadêmica, todas elas carecem de qualquer apoio interno, histórico ou canônico substancial. Na verdade, cada uma dessas hipóteses se desintegra diante de um fato evidente e inegociável, de que nenhum desses nomes alternativos possui qualquer livro no cânon das Escrituras Sagradas. Esse fato, por si só, já deveria bastar para encerrar o debate.

O cânon é apostólico, e o Espírito testifica isso. A Bíblia, em especial o Novo Testamento, não é uma coletânea de bons escritos cristãos do primeiro século. Ela é revelação inspirada, infalível e apostólica. O critério básico para a inclusão de um livro no cânon sempre foi a autoridade do autor, ou seja, ele precisava ser um apóstolo ou alguém diretamente ligado a um apóstolo sob autoridade apostólica, como no caso de Marcos (discípulo de Pedro) ou Lucas (companheiro de Paulo).

Ora, nomes como Apolo, Barnabé, Clemente ou Priscila jamais foram reconhecidos como autores inspirados de qualquer outra porção das Escrituras. Nenhum deles aparece assinando qualquer epístola ou revelação canônica. A ausência total de qualquer outro livro canônico por parte desses nomes é um dado teológico importante: Deus não os constituiu como autores inspirados do Novo Testamento. Se Hebreus fosse de qualquer um desses personagens, isso tornaria a epístola uma exceção sem precedentes, um livro canônico escrito por alguém sem qualquer outro vínculo profético ou apostólico com o restante das Escrituras. Isso fere frontalmente a unidade e integridade do cânon bíblico.

Hebreus não é uma epístola superficial. Ao contrário, trata-se de uma das mais profundas, sistemáticas e teologicamente refinadas porções de toda a Escritura. Ela exige um autor que domine profundamente o Antigo Testamento; que compreenda em detalhes a obra redentora de Cristo; que tenha autoridade para instruir os crentes judeus e gentios; que fale como porta-voz autorizado da nova aliança; que use a tipologia, a doutrina do sacerdócio, da expiação, do tabernáculo e do pacto com precisão espiritual.

Não há ninguém entre os nomes sugeridos que reúna essas credenciais. Apolo, por exemplo, era “elocuente e poderoso nas Escrituras” (At 18.24), mas não sabemos de nenhuma epístola reconhecidamente inspirada dele. Barnabé era “homem bom e cheio do Espírito Santo” (At 11.24), mas também não escreveu nenhuma revelação canônica. Priscila e Aquila eram fiéis cooperadores no ministério, mas jamais aparecem como autores ou mestres doutrinários. Nenhum deles, além disso, tinha autoridade apostólica para exortar com tamanha ousadia, como vemos em Hebreus 6, 10 e 12. Só um apóstolo, e, mais precisamente, o apóstolo aos gentios, que também amava profundamente os judeus (Rm 9.1-3), poderia escrever assim.

É simplesmente inconcebível que Deus tenha entregue à Igreja uma obra de tal magnitude como é a epístola aos Hebreus, capaz de explicar com precisão o sacerdócio de Cristo, a natureza da nova aliança, a superioridade do Evangelho, a tipologia veterotestamentária e a fé perseverante, através de um autor sem qualquer outro vínculo apostólico ou doutrinário no cânon.

Conclusão:

Ao concluir esta investigação profunda sobre a autoria da epístola aos Hebreus, não faço isso com uma mera satisfação intelectual ou com o intuito de vencer uma disputa acadêmica. O que está em jogo aqui é algo maior do que tudo isso, a saber, a integridade da leitura bíblica e a percepção da unidade teológica que permeia todo o cânon dos 66 livros. O propósito não é atribuir de maneira forçada a autoria a Paulo como se isso fosse um dogma, mas demonstrar, com base na própria Escritura, que tal autoria é a mais provável, a mais consistente e, ouso dizer, a mais evidente, quando se leva em conta toda a gama de informações disponíveis.

A epístola aos Hebreus, com sua elevação teológica, estrutura lógica impecável, densidade cristológica e domínio veterotestamentário, representa uma das obras-primas do Novo Testamento. E ao longo dessa análise, tornou-se cada vez mais claro que ela não surgiu de um autor qualquer, nem de uma escola genérica do cristianismo primitivo, mas de alguém que conhecia profundamente a transição entre os pactos, que dominava o Antigo Testamento não apenas como texto, mas como tipologia viva, e que pregava a supremacia de Cristo com a mesma veemência com que havia sido chamado para sofrer pelo nome dEle entre os gentios. Falo simplesmente de Paulo de Tarso.

Os argumentos contra a autoria paulina, embora sejam alguns deles respeitáveis, tornam-se frágeis quando confrontados com a totalidade do conteúdo da epístola. A ausência de uma saudação pessoal não é suficiente para invalidar sua autoria, especialmente quando existem precedentes para adaptações pastorais em seu ministério. A diferença estilística, por sua vez, se explica razoavelmente por fatores como o uso de um amanuense (talvez Lucas) ou pela mudança de público-alvo. Hebreus não é endereçada a uma igreja gentílica, mas a crentes judeus, profundamente ligados à tradição mosaica, e para os quais o nome de Paulo poderia representar um obstáculo inicial. Nesse contexto, esconder sua identidade é, na verdade, um ato de humildade e estratégia sábia, não um sinal de outro autor. Além disso, os paralelos com as demais epístolas paulinas são abundantes e precisos. A teologia da Nova Aliança, a argumentação lógica e progressiva, o vocabulário específico, os temas recorrentes e até mesmo os detalhes pessoais (como a menção de Timóteo) compõem um retrato que se ajusta perfeitamente à mão de Paulo. A citação de Habacuque 2.4 em Hebreus 10.38, uma citação exclusiva de Paulo nas demais epístolas, sela esse argumento com um peso que não pode ser ignorado. Nenhum outro autor do Novo Testamento utilizou esse versículo como Paulo o fez, tornando-o um eixo doutrinário da justificação pela fé. Sua presença em Hebreus é mais que uma coincidência, é sua própria assinatura.

Não é difícil imaginar o apóstolo dos gentios, depois de anos de ministério, preso, cansado, mas inflamado pelo Espírito, ditando esta carta com o coração voltado ao seu povo, os judeus crentes, temendo que eles voltassem às sombras da antiga dispensação. Hebreus é o clamor de um coração pastoral que implora que seus irmãos olhem para Cristo, o verdadeiro Sumo Sacerdote, o Mediador da Nova Aliança, o sacrifício perfeito e a herança eterna. É um chamado à perseverança, à fé e à maturidade. E esse chamado, embora revestido de uma linguagem elevada e cuidadosa, é inconfundivelmente paulino. Nenhum outro apóstolo poderia ter escrito com tamanha profundidade e coerência sobre o fim da Antiga Aliança, a função tipológica da Lei e o triunfo absoluto de Cristo.

Negar a autoria de Paulo em Hebreus requer, em muitos casos, mais esforço hermenêutico do que aceitá-la. Requer ignorar os paralelos doutrinários, minimizar o testemunho da história da igreja (dos quais nem fiz questão de citar), especialmente da igreja oriental, mais próxima dos apóstolos, e rebaixar o grau de unidade interna do Novo Testamento. Por outro lado, afirmar que Paulo é o autor, ainda que por meio de uma redação adaptada e sem a habitual introdução nominal, harmoniza o conteúdo da epístola com o restante das Escrituras e preserva a continuidade da teologia apostólica com precisão e reverência. Portanto, concluímos com convicção que a epístola aos Hebreus é obra do apóstolo Paulo, ainda que envolta em uma roupagem literária cuidadosamente ajustada para alcançar um público específico. Sua omissão nominal não é omissão de autoridade. Sua ausência de saudação não é ausência de convicção. A epístola é sua, e isso se vê não apenas nas palavras, mas no espírito da mensagem. E mais importante do que saber quem a escreveu, é reconhecer quem a inspirou, o próprio Espírito Santo de Deus, que conduziu Paulo a declarar, com profundidade e beleza: “Temos tal sumo sacerdote, que está assentado nos céus” (Hebreus 8.1).

Em Hebreus, Paulo se ocultou, mas a glória de Cristo resplandeceu ainda mais. E por isso, mesmo em silêncio, sua voz ressoa forte, clara e irresistível em cada linha. Paulo de Tarso é, sem dúvidas, o autor da carta aos Hebreus.

Texto escrito por Clinton Ramachotte

Clinton Ramachotte é membro da Igreja Batista em Moraes Prado, na capital de São Paulo.
Bacharel em Teologia pela FATERGE, e também pela ESTEC-REF. É também professor da matéria de Seitas e Heresias na ESTEC-REF.
Autor de obras importantes na apologética, como “Os 5 Solas e Eu: A Prática Piedosa dos Solas da Reforma”, “Resposta aos Adventistas do 7° Dia: Um Tratado Apologético”, “Desvendando o Islamismo: Dissecando a Religião Muçulmana”, dentre outras obras.

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